segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Reféns da seca VI





Sertão do Araripe, Sertão do Pajeú, Sertão do Moxotó, Alto Sertão e Sertão do São Francisco. Os nomes de batismo apenas separam, em léguas tiranas, os rincões de vidas secas, mas o que chama atenção, na verdade, é o sentimento de apego, o maior da terra nordestina, daquela parte que é áspera, dura e cruel.

O que marca a fisionomia e os caracteres da sua gente, mais de 100 após a edição de Vidas Secas, é o fenômeno da inclemente seca, que, apesar de tudo, não os fazem deixar de amar a terra, porque a ligação é telúrica. A luta em Sertânia, a 380 km do Recife, no seco rio Moxotó, também é pela água.

Que em parte se evaporou e em parte foi retirada dos açudes e barragens por homens, mulheres e crianças. Maciel, 18 anos, seu sobrinho Jônatas, 4 anos, Marcio, o irmão, 17 anos, têm a companhia de Fofão, que poderia ser a Baleia graciliana. No sítio Fundões, onde moram, a seca mais longa e angustiante dos últimos 50 anos acabou com tudo.

Só lhes resta um poço, a 10 km de onde vivem, onde enchem um tonel de água para saciar a sede deles e de dois jumentos que criam. Em Iguaracy, terra do talentoso cantor Maciel Melo, Severina Maria da Silva, seis filhos, faz da rotina de lavar roupa o sustento da sua família. Como não há água em casa, recorre a um chafariz em Irajaí, caminhando e cantando num percurso de 5 km, para espantar os males, como diz a canção.



Severina revela que é largada do marido, mora numa casinha de taipa com a filharada e sua salvação é a ajudinha de R$ 80 do programa Bolsa Estiagem. “Lá em casa, falta tudo, meu filho. Mas a gente vai levando como Deus quer. Um dia come feijão com arroz, outro dia um preá que os meninos caçam e tá dando para escapar”, relata.

O chafariz, de onde retira a água para a lavagem de roupa, foi construído pela Prefeitura de Iguaracy e serve aos moradores da redondeza. A água é imprópria para o consumo humano, porque é salobra, mas dona Severina não tem opção. “Muitas vezes, a gente bebe dela também quando o pipa não aparece”, confessa.



Na pracinha decantada por Maciel Melo em Iguaracy, de onde se avista um céu azul anunciando dias difíceis pela frente, porque não há uma só nuvem, Justo Alves e Paulo Xavier, velhinhos aposentados, contam que vivenciaram secas terríveis nas décadas de 60, 70 e 80, mas nunca como a que está molestando a vida de tanta gente por lá.

“Estou com 82 anos resistindo por aqui, porque matuto não sabe viver em outro lugar que não seja na sua terra de chão seco, mas nunca vi nada igual como esta seca. Lá no meu sítio, não conheço uma pessoa que lucrou uma espiga de milho”, diz “seu” Justo.

Ao lado do amigo Xavier, ele faz previsões catastróficas. “Se só vier a chover em março, como ouvi dizer por aí que saiu na rádio, a gente pode até escapar, porque a aposentadoria não deixar a gente morrer de fome, mas o gado vai ser totalmente dizimado”, observa o velhinho, bem mais pessimista do que o amigo.



Para evitar a morte do rebanho bovino só resta aos pecuaristas do semiárido exportar para o Maranhão. O que abriu um novo meio de vida para gente que estava na roça, como é o caso do agricultor Manoel Oliveira da Silva, 24 anos, agora verdadeiro caixeiro-viajante. Na sexta-feira, depois de um dia na estrada, ele fez a parada técnica para o boi escapar.

Colocou as reses num curral locado, na beira da estrada, deu ração e água, para depois descansar o corpo numa rede a sombra do juazeiro. “Eu preferia viver na roça, porque não corria tanto perigo como agora. Levar carrada de boi dos outros é uma encrenca. A gente corre dois riscos: o de um acidente e outro dos bichos não aguentar a puxada”, diz.



Longe dali, em terras de Exu, berço do afamado sanfoneiro e cantor Luiz Gonzaga, que este ano terá seu centenário celebrado por artistas nacionais e sua gente simples, Daniel e Fábio, tangidos da roça pela estiagem, arrumaram uma carroça puxada por um jumento e agora ganham a vida vendendo a água que escasseia em suas terras de origem.

Por dia, chegam a lucrar até R$ 70. Compram o tonel de 50 litros a R$ 2 na fonte de Vavá, à beira do leito do rio Brígida, e comercializam por R$ 7 com as famílias, de casa em casa. “Tudo que a gente ganha é para ajudar no sustento da família, que perdeu tudo com a seca. Perdeu o milho, o feijão e a mandioca também”, diz Daniel, bem mais esperto do que o “sócio” Fábio, que é arredio por natureza.



Ninguém escapa da sina do sofrimento nos sertões euclidiano. Cada face encontrada pelas ruas ou lugarejos esconde um drama, que choca e comove, como Maria de Lourdes Pereira, encontrada na feira de Sertânia. O único filho que tem virou alcoólatra, o marido já morreu e ela vive de uma pensão que só cobre os remédios, sendo obrigada a comprar para se manter viva.

“Eu tenho úlcera, um pulmão fraco e doença nos ossos. Só um dos remédios custa R$ 80 e tenho que comprar toda semana. Vivo feito bicho, fraquejando, vendo a hora de fazer a última viagem chegar”, desabafa Maria.

Ao seu lado, dois repentistas que vivem de feira em feira em busca também da sobrevivência cantam o sertão e o sofrimento, refletindo a dura vida de tantas Severinas dali mutiladas por uma seca que parece chegou para acabar com tudo, inclusive a esperança.“O sol castiga/ a chuva não vem pra molhar/ Os pássaros voam cantando pra anunciar/ Que a terra seca o verde começa a murchar”, canta o violeiro diante de um olhar tristonho da Severina sem ninguém na vida, a Severina euclidiana, mas que poderia ser também de João Cabral de Melo Neto.

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