terça-feira, 13 de novembro de 2012

Reféns da seca VII





A terra é seca, mas o homem é, sobretudo, seco. Seco nas palavras, seco no olhar enigmático, seco na esperança. De molhado mesmo só as lágrimas que caem quando falam de perdas. Perda da lavoura, reduzida ao pó. Perda dos animais, banidos pela falta de ração, do capim devorado pela curtição do sol.


Em 2,2 mil km do mundo de vidas secas, percorrido por este repórter ao longo de uma semana, o que se avista no horizonte da maior estiagem dos últimos 50 anos são cenas dramáticas, de animais que caem mortos nas fazendas e pelas estradas.

De gente que anda léguas e mais léguas, com lata na cabeça ou puxando um tonel com ajuda de um jumentinho em busca de água. Água que se evaporou pelo calorzão de 40 graus. No sertão da maior seca entre tantas as que se abateram em meio século, até os pássaros morrem, as abelhas deixam de produzir mel.

Não fossem os programas sociais do Governo, como Bolsa Família, Bolsa Estiagem, Segurança Safra e aposentadorias requeridas por uma legião de velhinhos vencidos pelo tempo, os estragos seriam bem maiores.



Teriam atingido muito mais o homem do que os animais, característica desta seca. Cícero Amaro da Silva, 45 anos, ainda é o último dos moicanos em Placas, distrito de Sertânia, que já serviu para cenário do filme Central do Brasil. Com a picareta na mão, enfrenta um sol que racha a pele, preparando o solo para a invernada, que acredita cegamente que virá.

“Já vi as nuvens se formando. Vem chuva por aí”, diz ele. Se o sexto sentido de Cícero se confirmar estarão indo abaixo todas as previsões dos sistemas meteorológicos nacionais, que preveem o prolongamento da estiagem até março do ano que vem.

Quem passa mal ao ouvir as previsões catastróficas do tempo é “seu” Valdeci Pinheiro dos Santos, 77 anos, do sítio Barra, em Sertânia, sertão do Moxotó. Como Cícero, ele também é um moicano. Resiste aos rastros de destruição da seca sozinho em seu torrão, por uma fé inabalável.

A família dele – mulher e sete filhos – moram na parte urbana de Sertânia. “Vivo só durante a semana, só vou à cidade nos fins de semana. O gado só cresce com o olho do dono. Se eu abandonar também vai tudo para o beleléu”, diz , referindo-se às criações. De sete reses, duas já morreram por falta de pasto.



Vida igualmente sacrificada leva “seu” Enock Gregório, 67 anos. Passa o dia inteiro num vai e vem incessante pela estrada que liga Afogados da Ingazeira a Iguaracy, no Sertão do Pajeú. É ele que, com a ajuda de um jumentinho, espécie em extinção na região, busca água numa fonte a 10 km, para saciar a sede da família e dos animais.

“A água do chafariz é muito ruim, tem muito sal, mesmo assim a gente bebe. É a nossa salvação e a salvação do gado”, observa Gregório. Agricultor de mãos calejadas, passa o tempo olhando para o céu, para ver se vem chuva. “No sertão, a gente vive de pescoço torto e dolorido de tanto olhar para o firmamento na esperança de chuva”, diz.



Os que não acreditam mais na terra nem no milagre de uma invernada fazem como João Maranhão de Lima, 35 anos, que trocou a roça por uma dura jornada numa fabriqueta de pré-moldados de gesso em Araripina.

Antes de chegar de mala e cuia na capital do gesso, Maranhão vivia de um roçado de milho e feijão no sitio Molungu na Bodocó decantada por Luiz Gonzaga, que este ano será festejado no seu centenário a 98 km de onde ele (Maranhão) tira o sustento da sua família depois de ser deserdado das suas terras.

“Nunca tive medo de enfrentar trabalho. Por isso, foi fácil arranjar essa empreitada aqui”, diz o ex-agricultor e hoje carregador de peças de gesso. Na indústria de gesso de Araripina, que também enfrenta dias difíceis pela falta de água, centenas de Josés e Marias banidas do campo são encontradas em trabalho quase escravo.

Muitos trabalham sem a proteção dos equipamentos apropriados para evitar as doenças provocadas pelo contato direto com o gesso. Ildefonso do Mel, que faz o caminho do gesso em direção ao seu apiário todos os dias em Araripina, já perdeu também trabalhadores para a indústria gesseira.



“A apicultura já empregou muita gente aqui, num tempo em que havia fartura, tempo em que produzíamos 12 mil toneladas de mel”, conta Idelfonso, mais uma vítima da seca. A longa estiagem acabou com as colmeias, as abelhas ficaram sem o néctar das flores e não lhe restou outra saída se não a de recolher as caixinhas dos enxames para aguardar novos tempos.

“Nós tínhamos o orgulho de bater no peito e se apresentar como o maior produtor de mel do País, mel de abelha puro, genuíno”, diz ele, que é presidente da Associação dos Apicultores do Araripe, entidade que agrega mais de 400 criadores, que abandonaram seus apiários por falta das mínimas condições de produção.

Nos últimos 20 anos, a seca provocou um fenômeno em terras sertanejas: a migração acelerada do campo para as cidades. Em Exu, Serrita e Araripina é fácil encontrar diversas casas abandonadas nos sítios e fazendas pelos seus moradores, que buscam a sobrevivência na área urbana, em penduricalhos, fazendo bicos.



Luiz Silveira, apesar da idade avançada, é um exemplo disso. Deixou para trás a terra seca que tanto amava e dela por muito tempo tirou o sustento para acompanhar dois filhos que trabalham na cidade, um num hospital de vigia, outro na construção civil como pedreiro.

“Eu e minha veia ficamos sem fazer nada, mas já nos aposentamos. Voltar para o mato? Do jeito que a seca nos maltrata, nunca mais”, afirma.

Todos os personagens de Reféns da seca, encontrados por este blogueiro no mundo e vasto mundo de vidas secas, também já foram no passado semelhantes aos que inspiraram o livro O Quinze, de Raquel de Queiroz, que expõe o drama do retirante e todo o sofrimento que a seca pode trazer.

Fala sobre a seca de 1915 e de toda dor que essa seca causou, principalmente a família de Chico Bento, sua esposa Cordulina e seus cinco filhos, dos quais eles perdem três. O primeiro filho que eles perdem é Josias que morreu porque no desespero da fome comeu mandioca crua e se envenenou.

O segundo é Pedro, que desapareceu quando o grupo estava chegando a Aracarape e o terceiro é Manuel (Duquinha), filho caçula, que os pais decidem doar a madrinha Conceição por medo que o menino que, doente, morra como aconteceu com tantas outras crianças dessa época.

Depois de tanto sofrimento Chico Bento, Cordulina e seus dois filhos embarcam para São Paulo em busca de uma vida melhor e apesar do medo e da tristeza continuam a ter esperanças de um dia ter um futuro digno e sem tanto sofrimento.

O livro fala também de Conceição, que é uma moça inteligente com algumas ideias feministas que se sente atraída pelo primo Vicente, que também gosta dela, mas que graças á uma série de desencontros também não ficam juntos.

Um livro drama, como este que milhares de famílias enfrentam na maior seca dos últimos 50 anos, e que transporta o leitor para dentro do universo da seca e do sofrimento do retirante.

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