sábado, 10 de novembro de 2012

Reféns da seca V



O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano, o personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que a permanência na fazenda inóspita em que vivia estava esgotada. Como esgotado, hoje, está o agricultor Francisco José dos Santos, 59 anos, cinco filhos, encontrado sentado, em estado de abandono, com um cigarro de palha na boca, em frente de uma casa abandonada no distrito de Moraes, em Araripina.
Esgotado de sofrimento e de esperança também. Como Fabiano, o sofrido Francisco procura um rumo na vida nas paragens da maior seca dos últimos 50 anos e não encontra. Perdeu o milho e feijão que plantou, a égua morreu de uma doença que não sabe explicar e os dois filhos debandaram para São Paulo, para tentar trabalho escravo nas usinas.
“Não fosse os R$ 70 que a muié ganha do Bolsa Família a gente tá tinha sido condenado e banido”, reclama. Moraes, onde mora Francisco, é uma comunidade paupérrima, berço de mão de obra exportada de verdadeiros escravos para as fabriquetas de gesso em Araripina, distante 50 km.
No caminho dos retirantes e Fabianos do Araripe, região abençoada por ser uma das maiores reservas de gipsita do País, de onde se exporta gesso até para o Sul Maravilha, os personagens mutilados pela longa estiagem vão sendo encontrados e suas faces reveladas.
Francisco, 19 anos, Jonh, 22 anos e Antônio Carlos, 17 anos, que trocaram a enxada por um instrumento musical de sopro, ensaiam no sítio Flamengo, em Araripina, debaixo de um formoso juazeiro.
Embora jovens, já sentiram na pele que político de terras de vidas secas não distingue ninguém para fazer o mal. Tocavam na filarmônica de Araripina a troco de um salário, mas passada as eleições receberam cartão vermelho da Prefeitura e hoje, para não se escravizarem nas fábricas de gesso, fazem bicos em bandas na região.
Francisco, Jonh e Antônio Carlos perderam o emprego, mas não a esperança. “Não quero voltar para a roça, até porque lá não tem mais o que fazer mesmo. Meu pai plantou um pouquinho de milho, mas a seca levou tudo”, diz Francisco, que sonha em tocar numa grande orquestra. “Quem sabe, um dia não tenho esta chance”, aposta.
A chapada do Araripe é linda e formosa. Tem uma vegetação rica para as abelhas, mas a floração das árvores típicas, de onde elas retiram seu néctar, foi arruinada pela inclemente estiagem, que não mata apenas gente e animais, mas insetos também. De tanto produzir mel, Gilberto Silva ficou conhecido na região como “Giba do mel”.
No carro que transporta as colmeias estampou a frase “Bicho do mato”. Não é uma referência a ele, que vive verdadeiramente no mato, em Feira Nova do Saco, santuário do mel. Era de lá que saia – antes da seca acabar com tudo, com as colmeias e os enxames – grande parte da produção nacional de mel.
“Bicho do mato não sou eu, é abelha”, reage Giba, com a sua espiritualidade natural, quando perguntado se seria bicho do mato. 
Aos 81 anos, “seu” Luiz Rodrigues, pai dos irmãos Arnaldo, Antônio, Nivaldo e Givaldo, que também vivem do mel no Araripe, já viu passar pelo seu chão batido as grandes secas do século passado, mas confessa que esta, que tirou o sustento da sua filharada, praticamente dizimando a produção de mel, nunca.
A apicultura era um rentável negócio para os filhos, mas “seu” Lula nunca quis saber de abelhas. “Morro de medo da bicha. A picada dela dói que só a peste”, diz ele, gargalhando na frente de um dos filhos criador de abelhas. O tempo levou a vitalidade dele, mas não foi capaz de roubar-lhe o bom humor.
Quando perguntado o que fazia ainda naquela vida de tantos Severinos e Fabianos, sapecou, na ponta da língua. “Homem, hoje você só me vê sentado ou deitado. Sentado, fico vendo o tempo passar. Deitado, vivo a sonhar”.
Araripina, capital do gesso, foi o destino que o jovem Cacá, de 23 anos, tomou depois que perdeu o emprego de lavrador nas terras irrigadas de um projeto em Petrolina, à beira do Rio São Francisco. “Lá, eu transportava frutas na cabeça. Aqui, uso a força dos meus braços para ganhar meu pão”, diz ele, referindo-se à nova atividade.
Numa fabriqueta de produção de placas de gesso ele passa o dia inteiro dando duro. Sua função é entregar o produto à clientela numa rotina de penar. “Quem não tem cão, caça com gato”, diz ele. E acrescenta: “Numa seca danada dessa, quem arranja trabalho nas roças? É melhor ficar por aqui”.
Em Terra Nova, Alto Sertão, a ferrovia Transnordestina anda, diferente da Transposição. E quanto mais anda, mas abre oportunidades de emprego e de renda para uma gente que, antes dela, ou ia para Araripina se escravizar no gesso ou rumava para São Paulo em busca da salvação.
Alberes, 19 anos, cata pedra e arranca raiz, como ele diz na obra da ferrovia. Filho de agricultor, só estudou até a quarta série, mas há quase dois anos está tirando R$ 700 por mês na obra para ajudar a família em casa. No canteiro de obras, ele tem direito ao almoço e um lanche. E está feliz.
“Tanta gente aqui sem ter o que fazer e eu tendo como me sustentar isso é uma felicidade muito grande”, diz.

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