quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Reféns da seca VIII


Desgraça, caatinga estendida de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. Assim, era a linguagem coloquial de Graciliano Ramos quando varava madrugadas traçando os cenários e os destinos dos seus personagens de Vidas Secas.
Graça se foi, a sua obra ficou eternizada, mas o chão esturricado continua mutilando vidas Nordeste adentro. O que chama a atenção da maior estiagem dos últimos 50 anos é que não é necessário, como no século passado, percorrer longas distâncias para se deparar com o drama.
A 82 km do Recife, por trás de uma serra frondosa e famosa como a das Russas, em Gravatá, a seca já mostrou sua face impiedosa. Tangido do roçado, onde perdeu tudo que plantou e não há mais o que fazer, Antônio Luis Moraes, 44 anos, se dedica agora a única empreitada que sobrou: cortar aveloz.
Árvore que veio da África, com um látex usado até para a cura do câncer, o aveloz está ocupando as bancadas dos laboratórios de São Paulo para testes de um composto que destrói as células cancerígenas. E é a um micro empresário da região que Moraes entrega, sem saber o destino da plantinha.

Em Pedra, município encravado entre o Agreste e o Sertão, a população nunca havia sofrido um colapso total no sistema de abastecimento de água como agora, provocado por quase dois anos sem chuva.
Achar um barreiro, açude ou barragem por ali com um pingo de água para matar a sede da sua gente é missão impossível.
“Seu” João Feliciano Araújo Neto está cansado de fazer um percurso diário de 4 km entre a sua roça, onde só se avista a caatinga e um cinzento que atemoriza, porque sinaliza que dias mais difíceis virão pela frente, até o chafariz público.
Com uma carroça puxada por um burro, ele leva um tonel de água para matar a sede dos animais que ainda resistem.
“O pior da seca é que ela vai matando a gente aos poucos. Os animais, ela mata de vez, porque bicho tem que tomar muita água e comer muito para ruminar”, diz o velho resistente, contextualizando uma situação que é predominante na Pedra, como assim definem os moradores a sua cidade.

Maria Delfina Alves cansou de sofrer a procura de emprego no Espírito Santo e resolveu pousar em Lajedo, um dos santuários do melhor queijo que se produz no Nordeste. Lá, não teve sorte. Bateu ponto na Prefeitura semanas seguidas, mas nem uma mão estendida apareceu.
Resultado: teve que catar lata e garrafas de plásticos pelo lixo para juntar o resultado do seu esforço num saco de lona e entregar para uma fabriqueta de reciclagem do município.
“Passei a vida inteira trabalhando na roça, mas lá no Espírito Santo também não consegui arranjar nada para sobreviver”, conta, emocionada, sem conter as lágrimas, apontando para a filharada encontrada num barraco improvisado na estrada que liga Lajedo a Garanhuns.
Delfina vive praticamente de esmolar. “Isso aqui só rende a gente uns R$ 40 por semana”, revela. No seu barraco, os quatro filhos, o neto e a nora dormem no chão, porque ninguém da cidade apareceu por ali para doar sequer um colhão ou um cobertor. Leva, assim, uma vida de cão.
“Se pelo menos chovesse, a gente tinha emprego na certa nas roças”, lamenta. Já rumo ao Sertão de Verdejante, onde não se avista mais o verde, banido pelo sol de 40 graus, que expulsou dali até preá, Manoel Afonso de Lima, 53 anos, mostra disposição para resistir.

Ele é pastor de suas ovelhas e caprinos, animais rústicos, que se adequam com mais facilidades aos rigores fenomenais da seca. Por dia, ele anda léguas tiranas para encontrar comida para os animais.
“Bode come tudo, até lixo”, diz, resignado. O que tem salvado Afonso é uma linha de crédito aberta pelo Governo Federal para financiar ração.
Criadores de caprinos podem receber empréstimos até de R$ 12 mil. “Para o gado, que come muito e as despesas de ração são grandes, isso não é nada, mas para nós, criadores de bodes e ovelhas, foi um presente de nossa mãe Dilma, porque teremos 10 anos para pagar, além de uma carência de três anos”, abre o jogo.

A situação exposta pelo domador de ovelhas de Verdejante bate com a realidade. Em Venturosa, berço da bacia leiteira do Agreste Meridional, Nenem de Lívio, 42 anos, não recorreu aos bancos para financiar a ração do seu gado porque está endividado.
Para evitar, no entanto, a dizimação do seu rebanho ele tem recorrido à palha de cana, procedente das usinas da Zona da Mata.
Sua rotina é procurar preço mais barato na feira de Venturosa, onde os caminhões carregados de palha e também de cana fazem ponto de comercialização.
“Uma carrada não sai por menos de R$ 900”, revela Nenem, adiantando que com o agravamento da estiagem o preço chegou a subir para R$ 1,2 mil.
“E tem muita gente que ainda paga, para não ver o gado morrer na fazenda”, diz. Em Venturosa, pecuarista que não ceder a exploração tamanha só tem mais uma saída: mandar o gado para Alagoas, Estado vizinho, onde ainda se acha um preço razoável.
Lá, diferente de Pernambuco, ainda há pasto nas fazendas e tem muita gente locando suas terras para grandes pecuaristas pernambucanos.

Um Buíque, também integrante da bacia leiteira do Agreste, Pedro Francisco da Silva, 33 anos, leva para o gado o último lote de uma palma seca que encontrou numa fazenda distante, a 22 km de onde mora.
A palma é um dos melhores alimentos para o gado, porque é um energético. “Sem palma, o jeito agora é comprar palha de cana, mesmo sabendo que é uma exploração”, lamenta.
Ele diz que só não largou a dura tarefa de cuidar das 10 cabeças de gado do senhor Florentino, para quem trabalha, porque não há outro modo de sobreviver.
“Já cheguei a pensar em ir embora para São Paulo, mas com 33 anos dizem que estou velho, que não arranjo mais emprego por lá. Isso é um país sem-vergonha”, ataca.
A imagem da agonia de Pedro parte o coração. Só resta a ele como saída, para continuar alimentando o gado, acordar cedo, colher mandacaru, fazer uma fogueira e queimar os espinhos antes de picar a planta e distribuir para o rebanho.
Se não o gado que toma conta vai morrer igual ao alazão do velho mestre Gonzagão, seu ídolo, cuja família lá em Exu também pena com os efeitos da maior seca dos últimos 50 anos.
 

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